Justificação
(Por Leonardo Dâmaso)
John Macarthur afirma que não há doutrina mais importante
para a teologia cristã do que a doutrina da justificação pela fé somente - o
princípio sola fide da Reforma.1
Lutero disse que a doutrina da justificação pela fé é o
artigo pelo qual a igreja permanece ou cai. Calvino salienta que a doutrina da
justificação é o eixo ao redor do qual a igreja gira. Antony Hoekema enfatiza
que se a igreja estiver errada nessa doutrina, estará igualmente errada nas
demais.2
Explanação
1. A definição de justificação
Em termos simples, podemos definir a justificação como
“um ato de Deus pelo qual ele declara o pecador eleito como sendo justo sobre a
base da justiça de Cristo, uma vez que a justificação se refere à justiça de
Cristo sendo legalmente creditada ao eleito de Deus.”3
Berkhof sintetiza que, com base nessa justiça, todas as
ordens da lei são satisfeitas com respeito ao pecador.4 Ou seja, a pessoa passa
a ser considerada totalmente justa diante da lei de Deus e todas as exigências
da lei são plenamente satisfeitas.5
Nessa mesma linha de pensamento, John Murray afirma que a
justificação é simplesmente a declaração a respeito do relacionamento da pessoa
com a lei com a qual o juiz tem o dever de julgar.6 John Stott expande este
pensamento nestas sublimes palavras:
Justificação é um termo legal ou jurídico, extraído da
linguagem forense. O contrário de justificação é condenação. Os dois são o
decreto de um juiz (onde se declara o julgado como culpado ou inocente do crime
cometido). Dentro do contexto cristão eles são veredictos escatológicos
alternativos que Deus como juiz, poderá anunciar no dia do juízo (Hb 4.13).
Portanto, quando Deus justifica os pecadores hoje, está na verdade antecipando
o seu próprio julgamento, isto é, trazendo até o presente o que de fato faz
parte dos últimos dias.7
Portanto, concluímos que a Justificação não é um
processo, mas um ato declaratório de Deus. Acontece fora de nós, e não em nós.8
É instantâneo e não gradual. É a ação de Deus em declarar judicialmente que a
situação de determinada pessoa está em harmonia com as demandas da lei.9
Noutras palavras, é ser plenamente absolvido do crime cometido como se nunca o
tivesse feito.
2. A necessidade da justificação
A razão insofismável pela qual era necessário haver a
justificação é doravante ao pecado. Paulo diz em Romanos 3.23 que todos
pecaram, e estão afastados da glória de Deus. (NTLH) Ainda, na carta aos
Romanos, o apóstolo expande mais sobre esta realidade da corrupção radical do
homem também no (1.21,23-31). Jesus Disse também no sermão do monte em Mateus 5.20
que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum
entrareis no reino dos céus. (ACF)
Não obstante, todos pecaram por estarem unidos
pactualmente ao nosso representante federal Adão. Deus imputou o pecado dele a
todos. Nós estávamos lá naquele dia em Adão! Partindo deste pressuposto, o
homem pós-pecado é morto espiritualmente (Gn 2.16-17; Ez 18.4; Rm 6.23). No
entanto, como todos morreram espiritualmente em Adão ao pecar contra Deus, toda
a humanidade nasce pecadora, morta espiritualmente e completamente incapaz de
se voltar para Deus em arrependimento e fé através de sua escolha (Rm 3.10-12;
1Cor 2.14).
Portanto, foi necessário Deus, pela sua soberania, graça
e misericordiosa no conselho trinitariano traçar todo o plano da redenção e
enviar Cristo Jesus, o justo, para morrer pelos injustos, para assim sermos
justificados por Deus, adotados na família divina e retornarmos novamente a
comunhão íntima e profunda com o Pai em espírito (Hb 10.19-20).
3. O autor da justificação
Indubitavelmente, Deus é o autor da justificação dos
pecadores eleitos. “A salvação é obra de Deus do começo ao fim. Trata-se de um
plano eterno, perfeito e infalível de Deus Pai. Deus planejou nossa salvação
antes de lançar os fundamentos da terra.
1 Pedro 1.20 –
Pois vocês sabem que não foi por meio de coisas perecíveis como prata ou
ouro que vocês foram redimidos da sua maneira vazia de viver que lhes foi
transmitida por seus antepassados, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de
um cordeiro sem mancha e sem defeito, conhecido antes da criação do mundo,
revelado nestes últimos tempos em favor de vocês. (NVI)
Não foi a cruz que tornou o coração de Deus favorável a
nós; foi o coração terno de Deus que providenciou a cruz. O sacrifício de
Cristo no calvário não foi a causa da graça, mas o resultado”.10 “Não foi Jesus
Cristo quem tomou a iniciativa, no sentido de fazer algo que o pai relutava ou
não estava disposto em fazer. Não há dúvida de que Cristo veio por sua própria
vontade e se entregou gratuitamente. Mesmo assim, ele o fez em submissão à
iniciativa do Pai”11 (Jo 10.17-18).
4. A base da justificação
Se o autor da justificação é Deus, a base da justificação
é a justiça de Cristo. Todavia, o fator que predomina nesta justiça é a
obediência de Cristo, a qual é composta pelo aspecto ativo, referente à
obediência a lei por nós, e a obediência passiva, que consiste no cumprimento
penal dos pecados por meio do sofrimento e morte de cruz.
Todavia, não devemos fazer separação entre ambos os
aspectos da obediência. Tanto o lado ativo quanto passivo da obediência do
Salvador estão praticamente interligados entre si, e apenas formam o pilar da
plena obediência que Cristo obteve durante a sua vida impecável em que esteve
presente nesta terra, que culmina na sua justiça como base da nossa
justificação. Berkhof ressalta que a base da justificação encontra-se somente
na justiça perfeita de Jesus Cristo.12
Isaías 53.12 – “Por isso, eu lhe darei muitos como a sua
parte, e com os poderosos repartirá ele o seu despojo, porquanto derramou a sua
alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o
pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.” (ARA)
Filipenses 2.7-9 – “Ao contrário, esvaziou a si mesmo, ao
assumir a forma de um escravo, tornando-se como os seres humanos são (natureza
humana afetada pelo pecado). E, quando ele surgiu como um ser humano (no estado
de humilhação), humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte – (e)
morte na estaca (cruz) como um criminoso!” (BJC) ... e ser encontrado nele, não
tendo a minha própria justiça que procede da lei, mas a que vem mediante a fé
em Cristo, a justiça que procede de Deus e se baseia na fé. (NVI)
Romanos 3.21-22a – “Mas agora se manifestou uma justiça
que provém de Deus, independente da lei, da qual testemunham a Lei e os
Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que
creem.” (NVI)
5. A distinção entre a justiça Transferida e a justiça
pessoal
Basicamente, o termo imputar ou transferir significa
“atribuir algo a uma pessoa”. “Denota creditar ou pôr esse algo em sua conta. O
que é imputado ou transferido a pessoa passa a ser legalmente dela; e isto é
contado como uma coisa que lhe pertence”.13
No contexto bíblico, imputação não significa trocar a
natureza ou a essência da pessoa, isto é, a condição anterior, o seu caráter.
Entretanto, a imputação somente afeta a posição legal da pessoa. Quando os
pecados dos eleitos foram transferidos para Cristo na cruz, isto não fez de
Jesus pecador e tampouco contaminou a sua natureza afetando o seu caráter
santo. Essa transferência, na verdade, apenas tornou Cristo o responsável legal
pelos pecados dos pecadores eleitos.
Sobre esta questão de justiça imputada, Calvino
sintetizou a “iustitia aliena, isto é, a justiça que vem de outro, que vem de
fora. Todavia, não há nenhuma dúvida de que aquele que é ensinado procurar
justiça fora de si próprio é destituído de justiça em si mesmo. Mais adiante,
Calvino diz: Você pode ver que nossa justiça não está em nós, mas em Cristo, e
que a possuímos somente sendo participantes em Cristo; de fato, com ele
possuímos todas essas riquezas”.14 Portanto, conforme diz as Escrituras, a
justiça de Cristo é imputada ou transferida a nós. A nossa justificação vem de
fora, iustitia extra nos, procedendo da justiça de Cristo.
Por outro lado, “devemos também ter o cuidado de não
confundir a justiça imputada (a qual recebemos pela fé e que é a única base de
justificação) com os atos pessoais de justiça (santidade), realizados pelos
crentes como resultado da obra do Espírito Santo em seus corações”.15
Vicent Cheung, com muita propriedade ressalta que “a
justificação é uma justiça imputada, e a santificação é uma justiça infundida.
A justificação é uma declaração instantânea de justiça, mas a santificação
(progressiva, não no aspecto posicional de santificados) se refere ao
crescimento espiritual do crente após ele ter sido justificado por Deus”.16
Romanos 4.6-11 “Davi diz a mesma coisa, quando fala da
felicidade do homem a quem Deus credita justiça independente de obras: Como são
felizes aqueles que têm suas transgressões perdoadas, cujos pecados são
apagados. Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa. Destina-se
esta felicidade apenas aos circuncisos ou também aos incircuncisos? Já dissemos
que, no caso de Abraão, a fé lhe foi creditada como justiça. Sob quais
circunstâncias? Antes ou depois de ter sido circuncidado? Não foi depois, mas
antes! Assim ele recebeu a circuncisão como sinal, como selo da justiça que ele
tinha pela fé, quando ainda não fora circuncidado. Portanto, ele é o pai de
todos os que creem, sem terem sido circuncidados, a fim de que a justiça fosse
creditada também a eles;” (NVI)
6. O agente da justificação
Conforme vimos anteriormente, o autor da justificação é
Deus e sua maravilhosa graça; a base da justificação é a justiça de Cristo, não
obstante, o agente ou o meio da justificação é a fé. “A regeneração precede
tanto a fé como a justificação, e nunca é dito que ela segue ou resulta da fé,
nem que deve sempre ser confundida com a justificação. É a regeneração que leva
à fé, e é a fé que leva à nossa justificação”.17
Gálatas 2.16b – “Assim, nós também cremos em Cristo Jesus
para sermos justificados pela fé em Cristo...”
É dito na Escritura, principalmente por Paulo no NT, que
“a fé justifica porque ela recebe e abraça a justiça de Cristo oferecida no
evangelho”.18 “A fé, para Calvino, era apenas a causa instrumental da
justificação. Somente Deus justifica. Então, nós transferimos esta mesma função
a Cristo porque a ele foi dado ser nossa justiça. Heber Carlos de campos afirma
que é pela fé somente que o homem é justificado, mas a fé em si mesma não
justifica. Através dela o homem abraça a Cristo por cuja graça somos
justificados.19
Comparamos a fé a uma espécie de vaso. A menos que
venhamos esvaziados e com a boca de nossa alma aberta para procurar a graça de
Cristo, não seremos capazes de receber Cristo.20 Portanto, a fé é nossa
resposta divinamente capacitada ao chamado eficaz de Deus, e a justificação é a
resposta à nossa fé, a qual, antes de tudo, veio de Deus (2Tm 2.24-26).21
7. Quando ocorre a justificação?
Sobre o tema em pauta, Berkhof escreve:
Em Romanos 8.29-30 a justificação está entre os dois atos
de Deus realizados no tempo (antes de todas as coisas), os quais são a vocação
eficaz e a glorificação, sendo que esta começa no tempo presente (a partir da
conversão) e se completa na eternidade futura. Estes três juntos: conhecimento,
predestinação e chamado resultam de outros dois que são explicitamente
indicados como eternos, a saber - justificados e glorificados eternamente.
Entretanto, o Espírito não aplicou, nem poderia aplicar
este ou qualquer outro fruto da obra de Cristo desde a eternidade. Contudo,
podemos falar de uma justificação do corpo global de Cristo que aconteceu em
sua ressurreição (Rm 4.25), mas esta justificação é puramente objetiva, e,
portanto, não deve ser confundida com a justificação pessoal do pecador (no ato
da conversão)”.22
Portanto, mesmo que os eleitos de Deus já tenham sido
conhecidos, predestinados, chamados, justificados e glorificados por Deus em
Cristo antes mesmo da criação e da queda, contudo, os eleitos não nascem
regenerados, mas mortos espiritualmente. Sendo assim, eles precisam se
arrepender de seus pecados e vir a crer em Jesus como o seu salvador para que
possam receber todos os benefícios da obra de Cristo em suas vidas.
8. A extensão da justificação
Via de regra, a extensão da justificação nos remete a
extensão da expiação de Cristo. Para entendermos até onde a justificação
abarca, precisamos entender primeiro por quem Cristo morreu? Por todas as
pessoas ou somente pelos seus eleitos? Conforme diz a tradição reformada –
“Deus justifica somente o seu povo, sua igreja, aqueles que pertencem a Deus,
aqueles que o Pai entregou ao Filho para que por eles morresse e
ressuscitasse”.23
Em Romanos 8.33 é dito claramente que a extensão da
justificação está limitada somente aos eleitos de Deus, os quais ele justificou
por meio da obra redentora de Cristo. “Quem fará alguma acusação contra os
escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica.” (NVI)
A morte de Cristo pelo mundo inteiro ou por todas as
pessoas em geral, conforme vemos dentre tantos textos como (Is 53.4-12; Mt
26.28; Mc 10.45; Jo 1.29; Jo 3.16; Rm 5.7-10; 1Cor 15.3; Gl 1.3-4; Tito 2.14;
1Jo 2.1-2; Hb 2.9; Ap 5.8-9; Mc 4.11-12; Jo 10.11,15, 26-28; Jo 17.6-9, 19-21)
não deve ser entendida no âmbito universal, isto é, que a morte de Jesus foi
pelos eleitos e para os não eleitos, para os crentes e para os que nunca vão
querer ser crentes.
Não obstante, expressões como esta não significam em todo
o contexto das Escrituras que a extensão é universal, mas simplesmente ela
utiliza destes termos – mundo, por todos e por nós para sintetizar a
universalidade e diversidade dos vários eleitos espalhados por todo mundo.
Apocalipse 5.9 “... pois foste morto, e com teu sangue
compraste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação.” (NVI)
Ronald Hanko corrobora que o que tais passagens ensinam é
que Cristo morreu por todos os homens sem distinção, não por todos os homens
sem exceção. Em outras palavras, tais passagens ensinam que Cristo morreu por
todos os tipos de homens (1Tm 2.6a), por todos que estão nEle (1Cor 15.22), ou
pelo mundo de seu povo, isto é, por seus eleitos de todas as nações.24
Concluímos, então, que, assim como a expiação de Cristo
foi limitada, a justificação também é limitada, isto é, restrita e eficaz
somente nos eleitos para a salvação. Em contrapartida, quanto à humanidade não
eleita por Deus, ainda sim, eles desfrutam e participam também dos benefícios
da morte vicária de Jesus, porém, não para a salvação e justificação, mas no
que se refere a uma providência geral, que incluí bênçãos materiais, saúde,
prosperidade, dentre outras coisas.
Conclusão
Duas considerações finais acerca dos benefícios da
justificação:
1) A doutrina da justificação nos dá esperança para a
salvação mediante a fé na justiça de Cristo nunca será perdida (1Pe 1.5).
2) A doutrina da justificação nos remete a confiança e
alegria de que nossos pecados foram pagos e perdoados na cruz de Cristo pelos
seus méritos, e que Deus nunca irá nos punir, nos condenando ao castigo eterno
(Rm 8.1). Por outro lado estamos sujeitos a consequência de pecados cometidos e
a disciplinas oriundas do Senhor por causa deles (Hb 12.5-11).
Na justificação, Deus não nos torna justos, Ele
perenemente nos declara justos, completamente inocentes como se jamais
houvéssemos pecado contra Ele! É Deus declarando o culpado como inocente, o
injusto como justo!
2 Coríntios 5.19 – “Isto é, Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós
a palavra da reconciliação.” (ARC)
____________
NOTAS:
1. John Macarthur. Artigo: Muito antes de Lutero: Jesus e a
doutrina da Justificação.
2. Antony Hoekema. Salvos pela Graça, pág 155.
3. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 184-185.
4. Louis Berkhof. Teologia Sistemática, pág 510.
5. Franklin Ferreira. Teologia Sistemática, pág 254.
6. John Murray. Redenção consumada e aplicada, pág 109.
7. John Stott. Romanos, pág 124.
8. Hernandes Dias Lopes. Comentário Bíblico de Romanos, pág
165.
9. Ibid, pág 166.
10. Hernandes Dias Lopes. Comentário Bíblico de Romanos, pág
168.
11. John
Stott. Romanos, pág 127.
12. Louis
Berkhof. Teologia Sistemática, pág 520.
13. David S. Steele e Curtis C. Thomas. Justificação pela Fé (A dupla imputação).
Jornal: Os Puritanos.
14. Calvino. Institutas da religião Cristã, III, 11,23.
15. David S. Steele e Curtis C. Thomas. Justificação pela Fé
(A dupla imputação). Jornal: Os Puritanos.
16. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 188.
17. Ibid, pág 185.
18. Calvino. Institutas da religião Cristã, III, 11,17.
19. Heber Carlos de Campos. A justificação pela fé nas
tradições Luteranas e Reformadas.
20. Calvino. Institutas da religião Cristã, III, 11,17.
21. Vicent Cheung. Teologia Sistemática, pág 185.
22. Louis Berkhof. Teologia Sistemática, pág 516-517.
23. Heber Carlos de Campos. A justificação pela fé nas
tradições Luteranas e Reformadas.
24. Ronald
Hanko. Doctrine according to Glodiness, Reformed free publishing Association,
pág 155-156.
Artigo de Leonardo Dâmaso/ Fonte: Bereianos