O propósito da
salvação em 1 Pedro - 2/5
(Por Leonardo Dâmaso)
(continuação)
b) A razão do imperativo à santidade.
1.15 ... pelo contrário, segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também a vós mesmos em todo o vosso procedimento.
Após instar os cristãos a sempre se manterem como filhos obedientes e não se amoldarem ao antigo esquema de vida norteado pelo pecado que outrora eles faziam parte antes da conversão, Pedro, dessa vez, salienta por qual motivo os cristãos devem viver em santidade. O apóstolo realça que assim como Deus, que é santo, chamou os cristãos de uma vida outrora em trevas para a sua maravilhosa luz (2.9), os cristãos, em vista disso, também devem ser santos em tudo o que fizerem na vida. Se no versículo 14 Pedro exortou o que os cristãos “não devem fazer” (imperativo negativo), isto é, “não se amoldar” ao esquema de uma vida pecaminosa, aqui, mais uma vez, há outro imperativo – tornai-vos santos.
A
conjunção “mas”, no grego αλλα (alla), traduzido pela a ARA como pelo contrário, estabelece um
contraste com o versículo 14b. Portanto, o versículo 15 é a continuação do
versículo 14b, o qual amplia o tema da santidade na vida cristã. Era como se
Pedro dissesse: “Não façam aquilo de novo” – vos amoldar às paixões que tínheis anteriormente, “mas façam isso” – sejam santos também em tudo o que
fizerem. (NVI) Não obstante duas proposições são
destacadas aqui:
i. O caráter daquele que chama os
cristãos à santidade.14 A palavra “santo” possui
diferentes conotações de significado no Antigo e no Novo Testamento. Santo, no hebraico קדוש (qadosh),
significa “ser separado do uso comum para o uso exclusivo de Deus”. No Antigo
Testamento, todos os objetos que eram utilizados para Deus. As vestes
sacerdotais eram santas (Êx 28.2), o lugar específico para a preparação das
ofertas de sacrifício era santo (Êx 29.31), os vasos usados no templo eram
santos (1Rs 8.4).
Por outro
lado, a mesma ideia de “separado” que a palavra קדוש (qadosh) transmite no
Antigo Testamento é aplicada no Novo Testamento com a palavra grega άγιον
(hagios). Contudo, é importante frisar, para melhor compreensão, que a
santidade de Deus possui uma dupla conotação. Assim, destacamos a santidade
“singular” e a santidade “moral” de Deus. Senão vejamos:
1. A santidade singular de Deus.
De modo restrito, por ser completamente distinto, separado e adorado pela sua
igreja em virtude da sua magnífica grandeza inacessível e ao mesmo tempo
acessível mediante Cristo Jesus (Jo 1.14), somente Deus possui esta santidade
peculiar. Mesmo quando estiverem com os corpos glorificados vivendo eternamente
na terra restaurada, os cristãos não serão santos nesse aspecto como Deus é,
pois ainda continuarão sendo seres finitos. Desse prisma, a santidade de Deus é
única, sendo um atributo incomunicável aos homens (veja Êx 15.11; Is 57.15; Ap
4.8).
2. A santidade moral
de Deus. Proveniente de sua santidade singular, Deus também possui
uma santidade moral. As leis estabelecidas por Deus nas Escrituras revelam o
seu caráter santo e demonstram que ele é absolutamente livre de qualquer
deformidade ética. Deus é separado do pecado e do mal moral (veja Jó 34.10; Hc
1.13). Portanto, diferente da santidade singular, que é exclusiva em Deus, a
santidade moral é comunicável aos homens, o que veremos a seguir.
ii. A santidade deve abarcar todas as áreas da
vida dos cristãos. Pedro sublinha que, assim como Deus, o nosso pai
espiritual (2Cor 6.18; Hb 12.9; Gl 3.26) é santo, nós, cristãos, como filhos
obedientes (vs.14; Rm 8.13-16) também devemos ser santos em toda a nossa
conduta moral15 (2.12; 3.1, 3, 13; 2Pe 2.7; 3.11). O Deus que
exige santidade é, sobretudo, o modelo para que o imitemos em santidade (Ef
5.1). “Nenhum aspecto da nossa vida está excluído desse imperativo divino. Todo
o nosso procedimento deve resplandecer o caráter de Deus, a santidade daquele
que nos chamou do pecado para a salvação”.16
c) A santidade é um imperativo porque é confirmada nas
Escrituras.
1.16
Porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo.
Pedro,
agora, ratifica sua exortação aos cristãos sobre a necessidade de conduzirem
suas vidas em santidade recorrendo às Escrituras, afirmando que está escrito
que eles devem ser santos.
A
expressão está escrito γέγραπται
(gegraptai), no grego, “era usada em relação a documentos legais cuja validade
ainda permanecia”.17 Sendo assim, Pedro não baseia a sua
exortação em suas convicções particulares em como os cristãos devem se portar,
mas, sobretudo, lança mão da autoridade das Escrituras do Antigo Testamento
citando Levítico 11.44-45 para confirmar o seu argumento.
O
apóstolo extrai como base para o seu ensino aos cristãos uma exortação
proferida diretamente da boca de Deus a Moisés e a Arão, para que estes
instruíssem o povo de Israel a serem santos em toda a sua conduta moral assim
como Deus é santo (uma vez que a santidade é um dos temas que permeia
Levíticos, veja também 19.2; 20.7, 26; 21.8, 15; 22.9, 16, 32).18 Parafraseando,
era como se Pedro dissesse: Deus
é santo, logo, ele exige que nós, também, sejamos santos, porque ele próprio
corrobora em Levítico 11.44-45 e 19.2 para que sejamos santos assim como ele é santo! A
conjunção porque διότι (dióti) remonta a expressão está escrito, a qual alega que o
imperativo à santidade foi extraído das Escrituras.
Aplicação
prática
Não somos
santificados pela obediência aos preceitos de Deus estabelecidos nas
Escrituras; obedecemos aos preceitos de Deus porque fomos santificados [aspecto
posicional dos cristãos] na união com Cristo Jesus pela regeneração. Por outro
lado, como pessoas que foram (Hb 10.10; 1Cor 6.9-11), são (Hb 2.11) e estão
sendo santificadas pelo Espírito Santo (Hb 10.14), os cristãos, todavia, são
chamados a manifestar santidade [aspecto colaborativo na santificação], isto é,
o caráter do Deus santo em suas vidas “interiormente” quando estão sozinhos e
ninguém os vê, somente Deus, e “externamente” na maneira de viver (ARC) com os outros
pelos relacionamentos sociais (para mais detalhes sobre a santificação veja o
meu comentário do versículo 2b).
William
Barclay escreve:
O cristão
é um homem de Deus por eleição de Deus. É eleito para uma tarefa no mundo e
para um destino na eternidade. É eleito para viver para Deus no tempo e para
viver com Deus na eternidade. No mundo tem que obedecer a lei de Deus e
reproduzir a vida de Deus. O cristão foi eleito por Deus, e, portanto, em sua
vida tem que haver algo da pureza de Deus e em sua ação tem que manifestar-se
algo do amor de Deus. O cristão recebeu a tarefa de ser diferente.19
_________
Notas:
[14] A
expressão “segundo é santo aquele que vos chamou”, traduzida literalmente do
grego κατά τόν καλέσαντα υμας άγιον – “assim como o santo que vos chamou” é
incompleta, embora esteja correta. Porém, quando acrescentamos na tradução o
verbo auxiliar (tempo presente do modo indicativo) εστιν (estin) “é”, o sentido
da expressão fica mais claro – “assim como “é” santo aquele que vos chamou”.
(Almeida Século 21) No entanto, prefiro a tradução desse trecho da seguinte
forma: “Conforme o exemplo do Santo que vos chamou” (veja um exemplo similar em
2Pe 2.1).
[15] No
grego, o substantivo αναστροφη (anastrophe), literalmente “conduta”, traduzido
pela a ARA por “procedimento”, e pela a ARC por “maneira de viver”, enfatiza o
estilo de vida moral que uma pessoa tem no seu relacionamento com outras
pessoas. Desse modo, prefiro a tradução literal do grego ou a tradução da ARC.
[16] Hernandes
Dias Lopes. 1 Pedro, pág 50.
[17] Fritz Rienecker e Cleon Rogers. Chave
Linguística do Novo Testamento Grego, pág 554-555.
[18] A religião
judaica promovida e distorcida pelos fariseus e líderes religiosos ensinava que
os homens poderiam alcançar a santificação pelos seus próprios atos
simplesmente se cumprissem os preceitos descritos na “lei”. Tais preceitos de
santidade tinham conotações legalistas porque eram baseados numa interpretação
equivocada das Escrituras (Mc 7.1-13; Hb 13.9). Contudo, tanto a lei no Antigo
Testamento quanto o evangelho enfatiza o contrário. Assim como a salvação é e
sempre foi pela graça mediante a fé, a santificação (progressiva), por sua vez,
também é desfrutada pela fé (At 26.18).
[19] William
Barclay. 1 Pedro, pág 64-65.
***
Fonte: Trecho extraído do Comentário Expositivo de 1 Pedro do autor.
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